Na segunda jornada de Outono, decorrida já a 14 de Outubro, tivemos apanha de bolota em segunda edição, mas com novos voluntários.
Um grupo seguiu o mesmo caminho da 1ª jornada de Outono, caminhando para montante ao longo do Ribeiro, a partir da Quinta das Tílias, enquanto outro pequeno grupo foi instalar duas barreiras para sinalizar (para quem tem dificuldade em compreender sozinho) que um troço de um vale, como o Vale da Estrela, não deve ser percorrido de nenhuma maneira e muito menos por veículos motorizados de duas rodas. O facto de acontecer, e não apenas no Vale da Estrela, mostra como a consciência face à dramática situação da nossa paisagem pode ser tão diminuta, num momento em que era necessário que fosse enorme.
Um carvalho cheio de luz, na Várzea-de-Além. Foto da voluntária Paula Pires (PP).
Os dois grupos encontraram-se na Benfeita, onde um formoso carvalho proporcionou uma excelente colheita.
Voluntárias estreando-se na apanha da bolota (PP).
Apanhando bolota num generoso carvalho da Benfeita (PP).
Preciosas bolotas (PP).
O carvalho da Benfeita
Seguindo o modelo da jornada anterior, a equipa dirigiu-se depois à área da Ponte Nova, onde vale sempre a pena voltar, quanto mais não seja para admirar a paisagem. Mas desta vez não almoçámos aí, simplesmente porque a comida não tinha ido…
À Ponte Nova vale sempre a pena voltar (PP).
As preciosas bolotas da Ponte Nova (PP).
Esta ainda não era a foto de despedida, a não ser para os dois voluntários que aqui terminavam a sua participação
À tarde rumámos ao Feridouro, percorrendo várias parcelas do Cortinhal, uma área em grande revolução desde que se decidiu aí reverter o eucaliptal para terra de cultivo. Os carvalhos que lá existiam parecem ter ficado agradecidos e alguns produziram bolota abundantemente.
Bolotas em plena árvore numa dos carvalhos do Cortinhal
Equipa voluntária muito concentrada na apanha.
Junto ao Ribeiro de Belazaima, onde ainda corria um "fio de água" (PP).
Como duas semanas antes, a equipa terminou a apanha da bolota pelo meio da tarde e consumiu as energias restantes a descascar mimosas por ali perto.
A foto final tirou-se já na base de operações, em torno do resultado do trabalho desse dia: mais uns 100 kg de bolota, para não ficar atrás da equipa da jornada anterior.
Foto final com o produto da colheita.
Depois veio o Domingo, em que o Inferno desceu à terra, como está ainda bem presente na memória de todos. Na vizinhança imediata do Cabeço Santo não houve fogo, mas as colunas de fumo observavam-se num raio de quase 360°: dos incêndios de Vouzela a nordeste, Tondela a nascente, Mortágua e Santa Comba Dão a sudeste, Penacova a sul, Vagos a sudoeste, Oiã a oeste… O ar ficou saturado de fumo e o sol empalideceu. O vento, enraivecido, juntava ao fumo o pó da terra seca, levantando nuvens de poeira. A temperatura, elevadíssima, a humidade do ar, baixíssima (35° de máxima em Belazaima, ainda 30° pelas 19 horas, com 20% de humidade relativa). As árvores, já num enorme stress hídrico, depois de 4 meses e meio sem chuva, suportaram, quiçá no limite das suas “forças “, mais este desafio, onde tiveram a sorte de escapar à voragem das chamas. Vou ao encontro delas e o que encontro? Homens de armas na mão! A Terra “grita” por cuidados com todas as suas forças e as únicas pessoas que encontro são homens de armas na mão! Do céu vem uma chuva de cinzas que tudo cobre de cinzento, e este triste dia chega ao fim.
No dia seguinte, Segunda, previa-se chuva, e logo pela madrugada mirei o céu. Pareceu-me carregado de nuvens, e julguei que começaria a chover a qualquer instante, mas logo que o dia clareou percebi que as nuvens ainda eram de fumo e que a chuva ainda era de cinzas. Esperei pela chuva a sério o dia inteiro, mas ela, importante, desesperadamente aguardada, fez-se esperar. Em Belazaima, passavam alguns minutos da 1 da madrugada de Terça quando começou a cair. Tive receio que fosse um sonho e levantei-me para a sentir nas minhas próprias mãos, no meu corpo inteiro: era mesmo chuva de águas claras e cristalinas (e se não eram assim me pareceram)! Foi-se o sono! Pela fim da madrugada a chuva parou mas ao nascer do sol contavam-se já 17 litros por metro quadrado, o suficiente para “habituar” a terra à chuva, da qual durante tanto tempo “jejuou”.
Na noite seguinte voltou a chover, agora 19 litros, e parecia que a memória desse inferno de Domingo já era apenas como a de um pesadelo que se desvanece com o acordar. Foi necessário fazer uma viagem, entre Belazaima e Seia, para constatar a dura realidade: durante mais de 50 km, entre Mortágua e Seia, o panorama é desolador: floresta, a de eucaliptos e pinheiros, mas também carvalhos, castanheiros, e mesmo pomares e terras agrícolas com pouco mais do que escasso restolho foram engolidos pelo fogo, que entrou mesmo em jardins, hortas e povoados. Midões, Fiais da Beira, Ervedal da Beira, Travancinha, Sameice, Folgosa da Madalena, terras da Beira Alta de nomes elegantes e paisagens diversas que agora se vestem de negro.
As encostas sobranceiras ao Mondego, já muito degradadas pela ocupação com mimosas, igualmente negras. Uma devastação imensa mas também uma imensa oportunidade de recuperação, em áreas que, ao contrário das zonas (tradicionais) de cultivo de eucalipto, estarão mais disponíveis para intervenção. Mas que ninguém duvide: a recuperação não se produzirá sozinha. Pelo contrário, sem intervenção as mimosas voltarão ainda com mais força, expandir-se-ão ainda para mais longe, e, até ao próximo incêndio, o empobrecimento paisagístico e biológico prosseguirá imparável.
Era necessário que as administrações e as comunidades se unissem num esforço ímpar, num movimento grandioso e determinado. Mas têm, umas e outras, energia e motivação suficientes para isso? Dizem que há 300 000 caçadores em Portugal. Mas, e quantos cuidadores? E voltamos a esse problema, já outras vezes invocado, da extrema discrepância entre o que é necessário fazer e o que as pessoas, as comunidades e as administrações estão dispostas a fazer. No fundo, um problema cultural e civilizacional. Um reflexo do momento de profunda crise e imenso perigo em que, como civilização, nos encontramos. Como invocar essas forças, latentes no fundo da consciência humana, mas numa letargia e numa prisão que parecem não as deixar expressar, para que manifestem todo o seu potencial? Que essas forças existem, não há dúvida. Por meio delas, povos se reergueram da devastação da guerra, civilizações, como a nossa própria, brilharam após séculos de trevas, e, mesmo individualmente, pessoas se elevaram e descobriam destinos valorosos, a partir dos destroços dos seus próprios passados. Como invocar essas forças, e trazê-las à superfície, eis algo tão premente como pôr mãos à obra, pois que a segunda não pode acontecer sem a primeira.
O Rio Seia, entre Ervedal e Travancinha, em Maio
O Rio Seia, entre Ervedal e Travancinha, a 22 de Outubro
E depois desta divagação, que ocasionalmente se afasta dos limites do Cabeço Santo, voltamos até ele, já no próximo Sábado, para continuar uma missão que, também ela, nasceu de uma catástrofe de fogo, e também ela se leva avante perante muita resistência e letargia, mas, mesmo assim, se leva avante.
Obrigado a todos os voluntários. E à Paula Pires pelas fotos inspiradas e inspiradoras!
Até Sábado!
Paulo Domingues