Cuidar de quem cuida da floresta
Para: Presidente da Assembleia da República
Ex.mo Sr. Presidente da Assembleia da República,
Os peticionários, produtores florestais e cidadãos interessados na protecção e valorização da floresta, vêm apelar a que o Parlamento aprecie, com carácter de urgência, para efeitos de alteração, o Decreto Lei N.º 10/2018, de 14 de Fevereiro passado relativo aos critérios de gestão a aplicar nas faixas secundárias de gestão de combustível.
Os peticionários entendem que este decreto e a legislação conexa enfermam dos seguintes defeitos:
- Ignoram e agravam as verdadeiras causas do problema que pretendem combater;
- Por isso, erram na natureza dos instrumentos de política pública que deveriam ser privilegiados para combater esse problema;
- Erram, também, nas características técnicas das medidas que impõem aos produtores florestais porque estas não têm uma base científica sólida, tratam da mesma maneira situações diversas e podem, até, ter efeitos contrários aos pretendidos;
- São medidas moralmente injustas, ao colocarem sobre os ombros dos produtores florestais quase todo o ónus da resolução de um problema que não é só deles;
- São, também, injustas porque têm implícita a ideia de que os produtores florestais são os maus da fita, ou pior ainda, são os únicos maus da fita, só com deveres de não prejudicarem terceiros e sem direito de não serem prejudicados por terceiros, mesmo quando estes infrinjam a lei, e sem direito a uma justa compensação por prejuízos decorrentes do que tiverem que fazer em prol do interesse público;
- São, ainda, injustas quando se verifica que as próprias entidades públicas não evidenciam as áreas florestais sobre as quais têm responsabilidades de gestão e onde não cumprem este tipo de medidas que querem impor desta maneira aos produtores florestais privados;
- São medidas não exequíveis no espaço e no tempo que querem alcançar, passando, aqui também, para cima dos produtores florestais quase todo o ónus do incumprimento de uma legislação tão deficiente.
Concentrando-nos no primeiro destes sete defeitos, o decreto lei aqui em apreço e outras medidas do género ignoram as verdadeiras causas do problema que pretendem combater porque não consideram que as insuficiências numa gestão de combustíveis capaz de reduzir o risco de incêndios florestais resultam do processo de degradação da rentabilidade privada (rentabilidade para o produtor florestal) de muitos dos espaços florestais do país. Esta degradação vem desde meados do século XX quando as populações rural e agrícola começaram definitivamente a diminuir, embora possa ainda ser positiva a rentabilidade social desses espaços, ou seja, a rentabilidade que inclui o valor das externalidades positivas com a natureza de bens públicos (os chamados "serviços ambientais") produzidos por estes espaços.
Juntando isto a outro facto fundamental que caracteriza a estrutura deste sector em Portugal que é o de ser um dos países do mundo onde a percentagem de área florestal privada é mais elevada (mais de 90%), área esta fragmentada em unidades de exploração de pequena dimensão, o que se teria que impor como instrumentos de política a privilegiar não deveriam ser medidas de "comando e controlo" (legislação que impõe coercivamente determinadas acções aos agentes privados) como é o caso deste decreto lei e doutra legislação do género, mas sim incentivos económicos em dois sentidos complementares:
- Internalizar (ou seja, fazer reverter em receita para os produtores florestais) o valor dos bens públicos produzidos pelos espaços florestais até ao ponto de tornar positiva a rentabilidade privada da produção florestal;
- Dedicar parte desta internalização ao fomento de formas de gestão florestal agrupada (ex. criação e funcionamento de organizações de produtores florestais, de Zonas de Intervenção Florestal e outras);
- Fazer isto sob a forma de contratos programa, com um horizonte de médio prazo, estabelecidos entre o Estado e os produtores florestais e suas organizações, contratos esses devidamente monitorizados e avaliados de forma independente.
Já existem na política florestal algumas bases de partida para se caminhar neste sentido, a saber:
- Para internalizar o valor dos bens públicos gerados pelos espaços florestais existe o Fundo Florestal Permanente;
- Como formas organizativas que agrupam algumas componentes da gestão florestal existem as mais de 160 organizações de produtores florestais distribuídas por todo o país, as várias centenas de baldios e as mais de 180 Zonas de Intervenção Florestal que abrangem para cima de 930.000ha;
- Como embrião de um sistema de contratos programa com um horizonte de médio prazo, sujeitos a alguma monitorização, existe, por exemplo, o programa de sapadores florestais.
Tendo presente as bases atrás referidas, o caminho a seguir não é colocar no primeiro plano da política florestal medidas de comando e controlo como o decreto lei aqui em apreço, mas sim construir a partir dessas bases corrigindo as suas insuficiências, nomeadamente nas seguintes direcções:
- Concentrar as funções do Fundo Florestal Permanente e reforçar os seus meios no sentido da internalização das externalidades positivas geradas pelos espaços florestais e no incentivo a formas de gestão florestal agrupada através do co-financiamento não só dos seus custos de investimento, mas também de funcionamento;
- Dar liberdade de planeamento estratégico aos produtores florestais e às suas organizações, em conjunto com as suas comunidades locais, no desenho dessas formas de gestão florestal e das acções que acharem mais adequadas para a protecção e valorização dos espaços florestais do seu território (ex. serviços de aconselhamento técnico, equipas de sapadores ou outras acções de silvicultura preventiva, inventários da estrutura da propriedade florestal, fitossanidade, protecção da biodiversidade, certificação, fomento do voluntariado florestal, educação e formação, etc.);
- Disponibilizar os incentivos económicos para estas melhorias na gestão florestal através de contratos programa com um horizonte de médio prazo, estabelecidos entre o Estado e os produtores florestais e suas organizações, devidamente monitorizados e sujeitos a avaliação independente;
- Premiar os municípios que colaborarem neste esforço de promoção de formas de gestão florestal agrupada, numa atitude de complemento útil e não de substituto desse esforço organizativo dos produtores florestais e desincentivar os que fizerem o contrário.
Esta reorientação das prioridades e dos recursos afectos à política florestal ainda não aconteceu, quando já deveria ter sido iniciada e desenvolvida desde há muito tempo (meados do século XX). O decreto lei aqui em apreço em nada contribui para essa reorientação, bem pelo contrário. Por isso, os peticionários apelam a que não só seja reapreciado, mas que, sobretudo, dessa reapreciação resulte o desencadear de um processo que possa levar a colocar no centro da nossa política florestal o robustecimento substancial dos mecanismos de internalização das externalidades positivas geradas pelos espaços florestais e o fomento da gestão florestal agrupada. Sem isso, os principais problemas de que enferma o nosso sector florestal vão agravar-se cada vez mais.
Com respeitosos cumprimentos
Américo Manuel dos Santos Carvalho Mendes
Os peticionários, produtores florestais e cidadãos interessados na protecção e valorização da floresta, vêm apelar a que o Parlamento aprecie, com carácter de urgência, para efeitos de alteração, o Decreto Lei N.º 10/2018, de 14 de Fevereiro passado relativo aos critérios de gestão a aplicar nas faixas secundárias de gestão de combustível.
Os peticionários entendem que este decreto e a legislação conexa enfermam dos seguintes defeitos:
- Ignoram e agravam as verdadeiras causas do problema que pretendem combater;
- Por isso, erram na natureza dos instrumentos de política pública que deveriam ser privilegiados para combater esse problema;
- Erram, também, nas características técnicas das medidas que impõem aos produtores florestais porque estas não têm uma base científica sólida, tratam da mesma maneira situações diversas e podem, até, ter efeitos contrários aos pretendidos;
- São medidas moralmente injustas, ao colocarem sobre os ombros dos produtores florestais quase todo o ónus da resolução de um problema que não é só deles;
- São, também, injustas porque têm implícita a ideia de que os produtores florestais são os maus da fita, ou pior ainda, são os únicos maus da fita, só com deveres de não prejudicarem terceiros e sem direito de não serem prejudicados por terceiros, mesmo quando estes infrinjam a lei, e sem direito a uma justa compensação por prejuízos decorrentes do que tiverem que fazer em prol do interesse público;
- São, ainda, injustas quando se verifica que as próprias entidades públicas não evidenciam as áreas florestais sobre as quais têm responsabilidades de gestão e onde não cumprem este tipo de medidas que querem impor desta maneira aos produtores florestais privados;
- São medidas não exequíveis no espaço e no tempo que querem alcançar, passando, aqui também, para cima dos produtores florestais quase todo o ónus do incumprimento de uma legislação tão deficiente.
Concentrando-nos no primeiro destes sete defeitos, o decreto lei aqui em apreço e outras medidas do género ignoram as verdadeiras causas do problema que pretendem combater porque não consideram que as insuficiências numa gestão de combustíveis capaz de reduzir o risco de incêndios florestais resultam do processo de degradação da rentabilidade privada (rentabilidade para o produtor florestal) de muitos dos espaços florestais do país. Esta degradação vem desde meados do século XX quando as populações rural e agrícola começaram definitivamente a diminuir, embora possa ainda ser positiva a rentabilidade social desses espaços, ou seja, a rentabilidade que inclui o valor das externalidades positivas com a natureza de bens públicos (os chamados "serviços ambientais") produzidos por estes espaços.
Juntando isto a outro facto fundamental que caracteriza a estrutura deste sector em Portugal que é o de ser um dos países do mundo onde a percentagem de área florestal privada é mais elevada (mais de 90%), área esta fragmentada em unidades de exploração de pequena dimensão, o que se teria que impor como instrumentos de política a privilegiar não deveriam ser medidas de "comando e controlo" (legislação que impõe coercivamente determinadas acções aos agentes privados) como é o caso deste decreto lei e doutra legislação do género, mas sim incentivos económicos em dois sentidos complementares:
- Internalizar (ou seja, fazer reverter em receita para os produtores florestais) o valor dos bens públicos produzidos pelos espaços florestais até ao ponto de tornar positiva a rentabilidade privada da produção florestal;
- Dedicar parte desta internalização ao fomento de formas de gestão florestal agrupada (ex. criação e funcionamento de organizações de produtores florestais, de Zonas de Intervenção Florestal e outras);
- Fazer isto sob a forma de contratos programa, com um horizonte de médio prazo, estabelecidos entre o Estado e os produtores florestais e suas organizações, contratos esses devidamente monitorizados e avaliados de forma independente.
Já existem na política florestal algumas bases de partida para se caminhar neste sentido, a saber:
- Para internalizar o valor dos bens públicos gerados pelos espaços florestais existe o Fundo Florestal Permanente;
- Como formas organizativas que agrupam algumas componentes da gestão florestal existem as mais de 160 organizações de produtores florestais distribuídas por todo o país, as várias centenas de baldios e as mais de 180 Zonas de Intervenção Florestal que abrangem para cima de 930.000ha;
- Como embrião de um sistema de contratos programa com um horizonte de médio prazo, sujeitos a alguma monitorização, existe, por exemplo, o programa de sapadores florestais.
Tendo presente as bases atrás referidas, o caminho a seguir não é colocar no primeiro plano da política florestal medidas de comando e controlo como o decreto lei aqui em apreço, mas sim construir a partir dessas bases corrigindo as suas insuficiências, nomeadamente nas seguintes direcções:
- Concentrar as funções do Fundo Florestal Permanente e reforçar os seus meios no sentido da internalização das externalidades positivas geradas pelos espaços florestais e no incentivo a formas de gestão florestal agrupada através do co-financiamento não só dos seus custos de investimento, mas também de funcionamento;
- Dar liberdade de planeamento estratégico aos produtores florestais e às suas organizações, em conjunto com as suas comunidades locais, no desenho dessas formas de gestão florestal e das acções que acharem mais adequadas para a protecção e valorização dos espaços florestais do seu território (ex. serviços de aconselhamento técnico, equipas de sapadores ou outras acções de silvicultura preventiva, inventários da estrutura da propriedade florestal, fitossanidade, protecção da biodiversidade, certificação, fomento do voluntariado florestal, educação e formação, etc.);
- Disponibilizar os incentivos económicos para estas melhorias na gestão florestal através de contratos programa com um horizonte de médio prazo, estabelecidos entre o Estado e os produtores florestais e suas organizações, devidamente monitorizados e sujeitos a avaliação independente;
- Premiar os municípios que colaborarem neste esforço de promoção de formas de gestão florestal agrupada, numa atitude de complemento útil e não de substituto desse esforço organizativo dos produtores florestais e desincentivar os que fizerem o contrário.
Esta reorientação das prioridades e dos recursos afectos à política florestal ainda não aconteceu, quando já deveria ter sido iniciada e desenvolvida desde há muito tempo (meados do século XX). O decreto lei aqui em apreço em nada contribui para essa reorientação, bem pelo contrário. Por isso, os peticionários apelam a que não só seja reapreciado, mas que, sobretudo, dessa reapreciação resulte o desencadear de um processo que possa levar a colocar no centro da nossa política florestal o robustecimento substancial dos mecanismos de internalização das externalidades positivas geradas pelos espaços florestais e o fomento da gestão florestal agrupada. Sem isso, os principais problemas de que enferma o nosso sector florestal vão agravar-se cada vez mais.
Com respeitosos cumprimentos
Américo Manuel dos Santos Carvalho Mendes
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